Todos os anos, durante nove noites entre setembro e outubro, os hindus comemoram o festival de Navaratri, em homenagem à Deva, em sua suas múltiplas formas. Nesse festival Deus é adorado enquanto Mãe.
Deva em sânscrito quer dizer aquela que brilha. As deidades são exatamente isso, seres iluminados que existem em níveis sutis da consciência, em reinos mais elevados que os físicos.
Trata-se de um belíssimo festival, onde, durante os três primeiros dias, Deva é adorada sob a forma de Durga, Shakti de Shiva, a personificação da força de poderes supremos, capazes de destruir todas a impurezas, vícios e defeitos. Os três dias que seguem sãos dedicados a Lakshmi de Vishnu, personificação da pureza e da prosperidade. Essas qualidades adquiridas, estamos prontos para alcançar o conhecimento, objetivo último da existência humana. Assim, nos 3 últimos dias Deva é adorada sob a forma de Sarasvati, Shakti de Brahman, ou a representação do conhecimento de nosso ser verdadeiro, nossa identidade com o ilimitado e eterno Brahman.
O décimo dia é chamado Vijaya Dashami, dia da Vitória, considerado auspicioso, dia em que Deva finalmente destrói o demônio Bhandasura, a personificação da ignorância.
Embora sejamos permanentemente encorajados a desenvolver características masculinas tais como expansão, audácia, ambição, força, velocidade, densidade material, há igualmente um poder latente em nós com características femininas como nutrição, introspecção, criação, paciência e sensibilidade espiritual que deve ser despertado. Afinal, se perdermos a conexão com nossa alma – ponto de encontro entre corpo e espirito –, que é feminina, nos perdemos e nos desequilibramos.
A vida moderna transformou a Mãe consciência, que é fluida e geradora de sabedoria, em algo estático e inflexível. Para recuperamos essa consciência precisamos aprender a filtrar as vibrações nocivas e anular o sentido de isolamento que nos inflige interior e exteriormente.
Através do autoconhecimento podemos adquirir a consciência dos Karmas (ações) únicos que condicionam nossa vida e assim recuperar a memória de compaixão, gentileza, perdão e amor, qualidades inquestionáveis de nossa Shakti interior.
Este poder, o poder de Shakti, é inerente a todos. As representações das diferentes deidades nada mais são do que as diferentes energias manifestas de Shakti, ou diferentes aspectos dessa poderosa energia. Em termos psicológicos, as deidades da tradição indiana são arquétipos, podendo ser comparadas aos diferentes papéis que desempenhamos no nosso dia-a-dia: o de mãe, mulher, profissional e criança.
O sagrado feminino foi historicamente ocultado pelas sociedades ocidentais e orientais, assim como a força das mulheres foi subordinada ao masculino por séculos. Mas diferentemente dessas tradições, que consideram o feminino passivo e receptivo, a tradição tântrica traduz essa energia como força criadora e criativa, inseparável do Divino Absoluto.
Jung, o psicanalista que revelou ao mundo os mitos das diferentes tradições, considerou os arquétipos como a expressão de uma imagem original do inconsciente. Para ele, os arquétipos representam essa necessidade de apreender a vida de maneira condicionada, transmitida pela história da humanidade, as representações inatas, que forjam a intuição e a percepção com formas especificamente humanas. Vividas ao mesmo tempo enquanto emoções e imagens e influenciando eventos humanos importantes como o nascimento e morte, essa noção de arquétipo não é de fácil assimilação, pois nós não a inventamos.
No entanto, segundo ele, todos nós possuímos potencialidades em nossa psique, sob a forma de arquétipos femininos e masculinos. Carregamos em nós simbolicamente o outro sexo, chamado por Jung, Anima para o homem e de Animus para a mulher.
Animus é o componente masculino inconsciente da mulher, essa parte em nós que se expressa através da coragem, afirmação, inteligência racional e analítica. Enquanto Anima, o componente feminino presente no homem, de interiorização e receptividade, se expressa através da sensibilidade, das emoções, intuição e ternura.
Na linguagem do yoga, as principais deidades da tradição indiana são literalmente aspectos ou facetas da realidade divina. A tradição indiana adora a realidade com um Todo, na qual o Divino não somente transcende a matéria, mas se manifesta na estrutura celular do mundo, podendo inclusive se personificar. Suas representações possuem a força total do Absoluto e quando as contemplamos, elas iluminam nossa consciência.
Deva na forma de Sarasvati, representa a água presente em nós e nos confere força de renovação. Na forma de Lakshmi, representa o movimento, despertando em nós o sentido do belo, da felicidade e da abundância. Na forma de Durga, representa o fogo em nós, nos oferecendo instrumentos para a transformação interna.
Todas as tradições reconhecem que para que possamos evoluir na jornada espiritual (Sadhana), esse poder feminino deve ser evocado e acessado. Para que esse poder se manifeste, Bhakti, ou a devoção à Deusa é um elemento fundamental.
Do ponto de vista prático, quando contemplamos e adoramos as deidades, focalizando em suas energias, elas agem transformando-nos no plano sutil, onde realmente a mudança é possível. Elas nos permitem ir além do nosso próprio ego - que nos identifica às limitações e às imposições culturais –, nos aproximando da nossa verdadeira essência. Desde a idade média, o yoga tântrico indiano e tibetano meditam sob a luz dos arquétipos divinos para evocar os poderes transformadores da nossa própria consciência.
Os vedas oferecem inúmeras práticas para convidar, focalizar e direcionar essas energias de cura profundas para que elas se manifestem. Entre essas práticas, temos os mantras (sons sagrados), mudras (gestos de mãos sagrados), yantras (mandalas e desenhos de energia sagrados), dhyana (meditação), prática de yoga ritual e prayoga (cerimônias sagradas).
Para atrair a energia feminina, devemos também e, principalmente, nos permitir desacelerar. Mesmo que nossa mente tente frequentemente nos convencer que qualquer outra coisa é mais importante do que fazer uma pausa – o que pode ser perturbador, já que isso nos leva inevitavelmente a analisar nossos hábitos –, evocar o feminino requer escuta. E quanto mais o escutamos mais ele se expressa. Sua voz se torna forte e nítida. E se porventura o ignoramos, ele ecoará cada vez mais alto para chamar nossa atenção.
Escutar esta voz não tornará nossa vida mais fácil, porém, ela se tornará mais satisfatória, aprofundada e enriquecedora. Ao despertar nossos sentidos, o feminino nos conduz a um lugar de dúvidas, mas também nos ensina a apreender a realidade sagrada e sensorial.
Para dar voz ao feminino sagrado, devemos procurar momentos que nos proporcionam equilibro e o despertar de uma sintonia consigo mesmo: ela pode vir do coração, com a brisa e o silêncio, através da música, em um momento de introspecção, na dança, na leitura de um poema ou durante um a prática de yoga.
Let’s Yuj