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Gabriela Nanni

Deixar ir

Actualizado: 27 sept 2020

Original Arnaud Kancel, traducción Gabriela Nanni

Santosha
Deixar ir







Ser você por inteiro

Um certo mestre espiritual estava ensinando o desapego à sua assembléia de discípulos “vocês não são isso!”. "Parem de remoer as situações do passado pois o que importa é o presente”. “Do que vocês estão falando? Não ha nada aqui”, respondia ele às diferentes perguntas dos caminhantes. “No aqui e no agora, nada mais existe além do presente. O sábio não conhece outra realidade além do instante presente”. Os discípulos, inspirados, tentavam aplicar as instruções do mestre. Assim que um deles se perdia, sofria, desmoronava, havia sempre alguém dizendo para relativizar, invocando um deixar ir sem condição, remédio infalível, sempre! Um dos discípulos não conseguia vivenciar esse deixar ir. Eles se questionava demoradamente, ao sentir toda a história da sua vida cristalizada em seu corpo. Depois de muito se interrogar, ele observou os outros discípulos. Ele se deu conta que sempre havia alguém para relembrar o outro sobre esquecimento, porém não encontrou nenhum que parecia realmente tranquilo, livre de apego. Ele observou então o próprio mestre, e teve dúvidas. Em outro dia de ensinamento, o mestre lembrou seus discípulos da necessidade essencial de colocar um termo em seu próprio sofrimento, deixando no esquecimento um passado que não existe mais. O discípulo intrigado interrogou o mestre:

  • Mestre, se me cortarem uma mão, ela vai crescer novamente?

  • O que você quer dizer? Logicamente não, respondeu o mestre, à espera do que poderia vir depois de uma pergunta dessa.

  • Inclusive se eu parar de pensar nela, ela não crescerá, logicamente. Quando criança, foi meu coração que machucaram. Como então ter um novo coração?

  • Deixa a criança na época da infância. Ela não se encontra mais aqui, essa criança da qual você fala.

  • Se me cortarem a mão, o que o senhor diria? O que vale para um coração não vale para uma mão?

  • ...

  • Mestre, se saqueadores vierem bater à porta do templo, eu devo abrir-lhes?

  • Claro que não!

  • Como saberei que são saqueadores? Se o desapego consiste justamente em esquecer a realidade do passado, porque não esquecer o passado que me ensinou a reconhecer saqueadores?

  • Enfim, diz o mestre um pouco inquieto, você sabe muito bem que não se trata da mesma coisa!

  • Devo então praticar o deixar ir em relação a certas experiências, e não em relação a outras? Devo então esquecer as feridas escondidas no meu coração, e não aquelas que estão na superfície?

Os outros discípulos compreenderam muito bem o que acabara de acontecer. Eles compreenderam bem, mas concluíram somente que o mestre dessa vez não soube responder. eles não poderiam compreender outra coisa. Eles voltaram a escutar o mestre, afinal ele era o mestre. O discípulo intrigado estava agora convencido. Nada no mundo poderia apagar o sofrimento do passado, uma vez que o sofrimento do passado é realidade. Ele compreendeu que o presente contém o passado, e pressente o futuro. Ele compreendeu que não podemos esquecer, e que, aliás, não devemos esquecer nada. Ele compreendeu que o que ele precisava, não era uma pessoa que lhe dissesse para não sofrer mais com os fatos do passado. Ele precisava de uma pessoa que o ajudasse a viver com esse passado. Uma pessoa que o reconfortasse, que lhe desse segurança, e que lhe oferecesse todo o amor que ele merecia. Ele compreendeu que as marcas do sofrimento estavam bem escondidas dentro dele, e que a única pessoa que podia agir interiormente era ele próprio.

O aqui e o agora não anulam os fatos do passado. O convite ao desapego só acrescenta um sentimento de fracasso à dificuldade de conviver com aquilo que nos fez mal. Nós não esqueceremos mais ou menos nossas alegrias do que nossas tristezas, assim como não esqueceremos uma cicatriz visível em nossa pele. Estar no aqui e no agora, é sentir toda nossa experiência como constituinte de nossa realidade presente. O enfermo deve se tratar para se consagrar a sua busca interior. Sem isso, a dor ou a morte triunfaram. É a mesma coisa para as feridas internas. O desapego consiste a entender quem somos, e que é exatamente dessa pessoa que nos precisamos.


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